Foto de uma antiga fazenda onde viviam os ex-proprietários de escravos.
Após a Lei do Ventre Livre, e posteriormente a Lei Áurea, os ex-proprietários de escravas criaram uma forma de manter a mão de obra: os processos de tutela. De acordo com a pesquisadora Patrícia Urruzola, este era um método usado para manter uma “escravidão de forma disfarçada, através dos filhos da ex-escravas”. Segundo um estudo realizado por ela, no período entre 1980 e 1990, houve cerca de 90 processos de tutela que envolvia filhos de escravas e ex-escravas. Os casos mais comuns eram esses em que os solicitantes tinham como interesse assegurar os serviços das escravas e seus filhos. O tutor assinava um termo de responsabilidade, onde tinha como obrigação fornecer educação, alimento e vestimenta aos menores tutelados.
Os processos eram realizados pelo Juízo de Órfãos, que foi criado pelo Ministério da Justiça, e era responsável por tudo que envolvia o menor, e decidia se os candidatos a tutor eram ou não aptos a tutelar. Eram considerados menores aqueles que não haviam completado 21 anos. Os tutores eram nomeados a partir de três quesitos: os testamentários, nomeados por testamento; os legítimos, na falta ou incapacidade dos testamentários; e os dativos, designados diante da inaptidão de uns e outros. Este último era a maioria nos processos pesquisados.
Dentre os casos estudados, tem destaque os que o juiz dava credibilidade ao suplicante, que eram proprietários ou ex-proprietários de escravos e detentores dos serviços dos menores ou de suas mães. Nesses casos, sequer apresentavam registros de batismo do menor, ou a convocação do mesmo para depor, e o documento contava apenas com a assinatura do termo pelo ingênuo. As mães dos menores também não eram citadas, e os suplicantes não apresentavam testemunhas que comprovassem sua capacidade de tutelar, algo que era exigido nesses processos.
Caso de Eva e Suzana
Com isso é possível perceber que a maioria dos processos avaliados pelo Juízo de Órfãos tinha um objetivo: manter o controle sobre as ex-escravas, controlando seus passos, e continuar explorando a mão de obra de seus filhos, mesmo após a decretação da Lei Áurea.
As ex-escravas Eva Francisca e Suzana passaram por essa situação. Em agosto de 1988, o ex-proprietário João Basílio Coelho abriu um requerimento para conseguir a tutela dos filhos das ex-escravas. Durante o processo, João Basílio argumentou que providenciaria educação e afeto aos menores, que foram nascidos e criados em sua casa. Para ter sucesso, João pediu ajuda ao médico da família, que atestaria se as mães tinham ou não condições para criar os filhos.
No documento enviado por Basílio ao médico, há um pedido para que ele esclareça que se caso as mães saíssem de sua casa, elas teriam ou não condições para criar seus filhos. Esta preocupação mostra que com a tutela, João tinha por objetivo manter as ex-escravas sob seu teto, assegurando a mão de obra delas e dos filhos.
Dois anos depois, em 1890, o ex-proprietário retornou com um pedido de exclusão do cargo de tutor das crianças. Explicou-se dizendo que sua esposa havia falecido, e ele não tinha mais condições de cuidar dos menores, acrescentando que as mães queriam a guarda deles. Mesmo como o processo sendo referente aos filhos de Eva Francisca e Suzana, apenas Eva foi convocada a depor em juízo.
O processo revelou grandes informações sobre a vida de Eva após a abolição da escravidão. Mesmo casada, ela permaneceu na casa de João Basílio, recebendo comida e trabalhando por 10 mil réis por mês. A permanência dela também é por conta de suas filhas, que moravam na mesma casa, portanto poderia ficar perto delas. O processo terminou em 21 de outubro de 1890, onde o juiz entregou Antônia e Maria Júlia à tutela da mãe.
Caso de Minervina
Em outro caso, ocorrido em 23 de junho de 1988, Minervina Isabel entrou com pedido de devolução de sua filha e para que Antônio Lopes, seu patrão, se tornasse tutor da menor. A menina estava em posse de Joaquim Pereira, seu ex-senhor. Ele foi intimado a comparecer ao Juízo junto da menina Fortunata, de 10 anos. Porém ele não compareceu, alegando que a criança havia desaparecido. Dias depois, Minervina informou ao Juízo a localização da menor, que foi apreendida no local, e os autos foram dados por concluídos.
Minervina desejava retomar a relação com a filha, e por isso requeriu a nomeação de seu patrão como tutor e não a dela, pois sabia das dificuldades que encontraria na corte. Antônio Lopes era casado e trabalhador, portanto perante a lei da época, ele teria mais chances de conseguir a guardo do que uma recém liberta.
Como visto, os ex-proprietários usavam dos processos de tutela para burlar a Lei Áurea, mantendo os menores filhos de ex-escravas em seu poder, usufruindo de sua mão de obra. Além de casos como o de Eva e Suzana, onde o processo de tutela serviu para também mantê-las “escravas”. As relações mudaram, pois elas trabalhavam mediante remuneração, porém não existia uma liberdade, visto que elas não poderiam ir para outro lugar, pois ficariam longe dos filhos, e não teriam comida e teto garantidos.
Por outro lado, algumas ex-escravas puderam usar o processo de tutela em seu favor, como no caso de Minervina. Ela conseguiu solicitar que a tutela de sua filha fosse dada a seu patrão, a fim de ficar mais perto dela, e que ela recebesse melhores condições de vida.
Diante de toda essa dificuldade, toda essa luta para conseguir criar ou estar perto do próprio filho, mostra que o liberto não conseguiu efetivamente a liberdade.
Reportagem de Gabriel Pereira
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