Imagem retrata a luta de escravizados iorubás contra seus inimigos
O professor Davi Miranda Valverde, pós-graduado em História da África pela Faculdade UniCoimbra e mestrado especial em África e Colonialismo pela Universidade Federal da Bahia afirma que a Revolta dos Malês, que aconteceu no natal de 1835, foi o movimento mais importante do período escravocrata do Brasil. Ele aponta que o caráter religioso deu ainda mais força ao movimento e motivou muitas outras rebeliões na região.
— Essa revolta ficou marcada. A Bahia fervia na tensão de uma iminente rebelião. Os escravos eram chicoteados todo dia pelos senhores, inclusive pacífico Licutan que era um dos líderes e ajudou na articulação de um plano para tornar seus homens iorubás todos livres e poderosos. A revolução apesar de não ter tido êxito, foi extremamente importante pois influenciou futuras revoltas mostrando que era possível incomodar o sistema de escravidão e que os homens submetidos aquele regime, eram capazes de mudar isso - disse Davi Valverde.
A revolta foi tão importante na história do Brasil escravista que virou tema do Grêmio Recreativo e Cultural Escola de Samba Mocidade Alegre que fazia alusão a Revolta dos Malês. O professor Davi Miranda comentou sobre o samba enredo daquele ano. "A escola foi destaque no Carnaval de 1979 e invadia a Avenida Tiradentes com o refrão: “ô ô ô ô Alauacabá, Alauacabá ô ô ô ô!” Essa expressão é de origem islâmica pronunciada como "Allahu Akbar" que significa “Deus é grande”, fazia referência aos negros muçulmanos que lideraram o movimento dos iorubás.
Ahuna, Pacífico Licutan, Dassalu, Nicobé, Dandará, Gustar, Luís Sanim e Manoel Calafete. Oito nomes e uma mesma história. Todos escravizados que viviam na região de Salvador na Bahia. Homens de fé e força. O islamismo era a base do movimento que estava por vir. Trajes, abadás, amuletos e passagens do corão. Era a fortaleza desses iorubás. Ninguém esperava nada de meros escravizados mas eles tinham um plano libertario e pretendiam mudar drasticamente o cenário daquela província. Armaram um movimento para tomar o poder e mostrar a força que os imalês tinham no sangue que muitas vezes jorravam após chicotadas e outros castigos físicos.
A Revolta foi um dos movimentos mais importantes do período escravocrata além de uma característica totalmente peculiar. Os escravizados eram alfabetizados e sabiam ler e escrever. Com esse grau de conhecimento mais alto poderiam trazer grandes problemas para os senhores da época. Essa era a região que mais recebia mão de obra oriundas do tráfico negreiro e isso contribuiu ainda mais o acontecimento de rebeliões. Cerca de 600 iorubás vestidos com vestes islâmicas e amuletos com passagens do do corão, planejavam um levante que visava alcançar a liberdade.
Corão com escritos árabes encontrados com um africano morto na revolta
Na madrugada do dia 25, os mulçumanos estavam reunidos numa casa discutindo os últimos ajustes do levante. Alguns documentos por escrito foram encontrados por historiadores e revelam toda a conspiração daquela noite. Havia um plano totalmente elaborado já que se tratavam de escravizados intelectualizados com domínio da leitura e da escrita. Mas não contavam com uma delação vinda de uma escrava. Uma mulher chamada Guilhermina de Souza entregou o objetivo dos revoltosos para a força policial da época. No momento em que os iorubás perceberam que todo o planejamento tinha dado errado, saíram nas ruas de Salvador de forma completamente descoordenada, deixando ainda mais evidente que a revolta era real.
Segundo o professor Luiz Felipe Guerra, da rede pública do Rio de Janeiro, essa revolta teve um caráter religioso fervoroso e isso deu ainda mais importância para o movimento.
— É inegável a importância dessa revolta para a história de um Brasil escravista. Apesar do desfecho desfavorável, a luta dessas pessoas criou um clima de muito medo naquela área ali de Salvador. A religião era a grande ferramenta e motivação dos africanos. Para eles a fé podia libertá-los e colocá-los numa posição de poder. Havia também uma "demonização" da crença desses povos devido ao fato de estarem em um país onde o catolicismo predominava - disse Luiz Felipe Guerra.
O conflito não demorou muito tempo para ser decidido e terminou com a derrota dos Malês. Cerca de 73 escravizados e 10 policiais morreram no confronto. Aos capturados foram escolhidas algumas punições que se dividiram em chibatadas, deportação, prisão e mortes. Apenas quatro escravos foram mortos de fato e a grande maioria foi enviada de volta à África.
O professor Luiz Felipe Guerra comenta sobre as punições aos escravizados que foram detidos pela polícia durante a revolta:
— Os castigos foram desiguais. Uns foram mandados para outras regiões do país, alguns para o continente africano. O caso mais grave foi o de Pacífico Licutan. O rapaz foi condenado praticamente à morte. Foram 1200 chibatadas e humanamente falando, é impossível sobreviver a isso.
As leis da época permitiam punições que variavam entre 300 e 1200 chibatadas mas não eram realizadas todas de uma vez. Dividiam-se em seções de 50 chibatadas por dia para evitar a morte dos condenados.
Imagem retrata açoitamentos comuns em castigos físicos impostos para os escravizados
Evidências entre os historiadores apontam que o plano dos revoltosos era escravizar tudo que fosse branco, pardo ou negro não islâmico. O movimento terminou mas o legado contra a escravidão ficou. Essa luta simbolizou toda força de um povo reprimido e violentado por abuso de pessoas que se julgavam superiores por causa da cor da pele.
Segundo o professor e historiador Luiz Antonio Simas, a revolta poderia ter ficado ainda mais marcada na história em caso de sucesso embora não tivesse tanta estrutura para implantar um poder durante muito tempo:
— Eram escravos de um escalão mais alto. Tinham mais conhecimento que os demais. Mas era impossível essas pessoas conseguirem segurar a barra por muito tempo. Havia uma força nacional capaz de tomar o controle da situação a qualquer momento. Embora, isso faria o islamismo ficar ainda mais conhecido como resistência nas regiões próximas.
Teorias e mais teorias podem ser levantadas, mas o fato é que toda a luta desse povo que por anos foi massacrado por pessoas que tinham o poder pautado na raça, ficou marcado na memória e na história do nosso país. A Revolta dos Malês será eternamente associada à luta por liberdade em um país onde nem sempre existiu o direito de controle da própria vida. Além de punições extremamente desumanas. Todos esses aspectos eram retratos de um sistema racista e opressor que ficou por muito tempo instaurado em nosso país.
Reportagem de Kevin Harllen
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